Somos das poucas cordadas sem guia, e ainda por cima forasteiros. O Paulo Alves, mais experiente e sabido, já de véspera tinha definido a constituição das cordadas, que me deixou algo preocupado. Apesar de eu fazer cordada quase sempre com o Pedro Cid, ele escolheu-o para si e encomendou-me o Jorge Matos, na altura o participante com menos experiência deste grupo de 4. Preocupei-me, mas assumi que era para subir, e em segurança. Claro que este aspecto de garantir a segurança era muito relativo, uma vez que a corda ia esticada a uma boa dezena de metros, mas praticamente não se colocava qualquer tipo de material. Procedíamos a uma subida em simultâneo dos dois membros da cordada, passando apenas a corda por alguns bicos de rocha (que esperávamos detivessem alguma queda) e colocando muito de vez em quando algum anel de fita, quando a rocha passava do generalizado III para algum pontual IV grau.
Refugio Solvay, retirado daquiA aresta pareceu-nos longa, muito longa. Nunca parámos, mantivemos sempre bom ritmo e íamos assistindo a vários clientes assediados pelo ritmo alucinante dos guias que iam desistindo e voltavam para trás. Cada guia impunha um ritmo superior ao do seu cliente, rebentava com este, e voltava para baixo, com o dia ganho e pago à partida, e ainda ia almoçar a casa. Belo emprego! Eram mais as cordadas guiadas que voltavam para trás, do que as que atingiam cume. As horas iam-se sucedendo e os choques iniciais de tudo isto iam-se esbatendo. Habituamo-nos a tudo. O ritmo continuava alucinante. A cordada do Paulo Alves mostrava o caminho e a minha mantinha o ritmo, com dificuldade. Apesar de muito bem aclimatado, sem qualquer sinal de problemas com a altitude, o cansaço de 3 semanas de montanha começava a acumular e já só pensava em sair dali, ir para uma praia grega e comer uns bons bifes e umas “mogatchas” de queijo. Finalmente, atingimos o pequeno refúgio Solvay, com uma rápida paragem, uma olhada pelas duas tarimbas acanhadas e pelo wc, com alguma vertigem. Só aqui nos apercebemos, em toda a sua dimensão, o que deve ser a face norte do Cervino. O tempo corre e não permite grandes paragens. Além do tempo, também o oxigénio escasseia. Cada passo, cada puxada de braços, parece ser mais cansativa que no início. Observamos que a parte “fácil” das cordas fixas se aproxima, sentimos algum alento e incentivo. Com as cordas, o cume está no papo... Ilusão. As cordas fixas antigas, com diâmetro “naval”, enchem uma mão inteira e dão a sensação, ao fim de meia centena de metros, de que os antebraços vão claudicar. Parece que vamos abrir as mãos a qualquer momento e despenhar naquele mundo de total verticalidade, que aqui impõe as cordas fixas. Muitas vezes os pés estão assentes em nada, tal a verticalidade da parede..
Começamos a procurar sempre a próxima vira de pedra que nos permita um curto descanso e alívio dos braços. Também a neve fresca dos últimos dias, que até aqui não tem causado muitos problemas, começa a acumular-se em plataformas e presas. Levamos agora crampons calçados, o que torna tudo um pouco mais difícil, mas dá uma segurança acrescida na troca entre cordas fixas e nas escassas plataformas. No meio da luta contra o ácido láctico acumulado, vejo uma cordada de dois japoneses a descer do cume (já muito próximo), em que o guia despenha a rapariga pela zona vertical, literalmente, e lhe dá depois corda com um nó dinâmico. Leram bem: atira a cliente de 40 kg para o vazio, e depois vai frenando a queda! Em relação ao marido, um pouco maior que a pequena japonesa, tem mais pudor e dá-lhe uma espécie de segurança rápida ao longo das cordas fixas. Continuo chocado e escandalizado com estes guias antipáticos e rudes. Mas já nada me surpreende nem provoca muita emoção, e continuo decidido a subir e a atingir o cume, custe o que custar, mesmo que isso signifique um regresso depois da hora limite. Já na zona cimeira, surge um heli da Air Glaciers, a rondar o cume e a zona vertical das cordas fixas, que me causa transtorno e preocupação: neve pelo ar, cordas pelo ar, fitas de mochila furiosas a bater na cara, sei lá, um desassossego. Conforme chegaram, também assim partiram, depois de duas ou 3 voltas pelo cone somital. Mais uns comprimentos e eis que o cume falso surge na nossa frente, agora apenas com uma pequena aresta até ao cume real, com a sua cruz, que nos transmite uma forte sensação mística. São 13.30 do dia 23 de Agosto, e demorámos 9 horas de luta constante desde o refúgio até este cume, tirado a ferros.Mas a jornada não acabou para nós. O refúgio, pago a peso de ouro em francos suíços, não é para nós esta noite, e continuamos caminho abaixo, agora já em ténis e com os frontais a fraquejarem, até as baterias de 4,5 volts se exaurirem por completo. Em Staffel, finalmente, paramos. Procuramos uma cabana de lenha ou de gado para passar a noite. Apesar da baixa altitude e de termos encontrado uma parte de baixo de chalé com madeiras e até mesas, rapamos um frio desmedido. Pensamos nos companheiros de escalada que estão acima de 3.000, ao longo da aresta. No dia seguinte voltamos à civilização, eu com especial vontade de praia. Depois de várias noites do comboio, dia 30 de Agosto estou em Istambul com o Jorge Matos, em plena ocupação militar das ruas, e dia 3 de Setembro estamos no cume do Monte Olimpus, na Grécia, nos 2.917 metros do pico Mitikas.
Monte Olympus,Grécia, imagem retirada daquiA overdose de montanha passou depressa!
Texto e imagens de Rogério Morais