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Na primavera de 2002 participei numa expedição ao Makalu (8470m).
Nas primeiras duas ascensões escalei com o RD Caughron, americano de Berkeley (Califórnia) com 58 anos de idade, um bem sucedido gestor de sistemas informáticos. Pessoa sociável e divertida, que lia a The New Yorker, e com quem conseguia ter conversas para lá da esfera do montanhismo.
Na nossa segunda ascensão o RD falava-me muito no Makalu La, o colo a 6900m que teríamos de dobrar para montar o C2 (7400m).
No dia em que acordámos no C1 (6500m) para seguirmos para o C2, ele acordou mais cedo do que é normal e falava-me entusiasticamente em irmos dormir ao C2. Como ainda não havia um trilho, nem cordas, nem um reconhecimento desse itinerário, respondi-lhe friamente de que talvez não fosse boa ideia irmos carregados sem sabermos se lá chegaríamos.
Após muita insistência dele, lá carregámos uma tenda, sacos-cama, gás, panelas, fogão, alimentos, etc preparados para acampar no C2.
Nesse dia alguns alpinistas com os seus sherpas subiam ao Makalu La e montavam-se cordas. Nós subíamos lentos.
Por volta das 16h os sherpas e os demais alpinistas ocidentais começaram a descer. Tinham fixo as cargas a amarrações e desciam alegando que as cordas fixas não chegavam ao cimo do corredor.
Continuámos lentos e sentindo algum cansaço, mas com capacidade para continuarmos por mais horas, até que atingimos o extremo da última corda.
O RD mantinha uma enorme teimosia em continuar!
Eu informei-o de que não seguia e que a minha decisão era a de descer para o C1.
Expliquei-lhe que estávamos carregados e cansados, que a neve no corredor a 45º tinha pouca consistência e sem cordas fixas constituía um risco acrescido, que o dia já ia longo e nós escalávamos
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O RD concordou com tudo o que lhe expus, mas… decidiu que continuava!
Tentei convencê-lo a descer comigo: “é melhor jogar pelo seguro, amarramos aqui as cargas, descemos agora, e amanhã regressamos para tentarmos subir ao Makalu La”.
Eu estava perante um alpinista experiente que realizava pelo menos a sua quarta expedição a um cume de +8000m. Tinha-lhe explicado as razões do meu abandono e ele percebeu-as. Sabia certamente quais as consequências dos riscos que lhe falei, e nada mais pude acrescentar.
Senti-me vagamente culpabilizado por abandoná-lo, mas sabia que a minha decisão era claramente baseada na prudência, e a dele baseada na obstinação cega e no desvario.
Nada mais pude fazer…
Cheguei ao C1 era noite cerrada.
No dia seguinte às 8h, o italiano Fabriano vem ter comigo à tenda dizendo-me que o RD estava “morto”.
Os dois suíços, os únicos que tinham dormido no C2, tinham descido e passado por ele. Estava sentado n
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Nessa manhã o vento intensificou-se muito. Mesmo assim, o eslovaco Martin ainda tentou subir com medicamentos, mas acabou por desistir por cansaço e pelo estado do tempo que se agravava.
A conclusão que desejo apresentar deste episódio é a de que escalar cumes com mais de 8000m é uma actividade altamente exigente reservada a alpinistas muito experientes, que possuem total autonomia no campo técnico, físico e psicológico.
Esta é a disciplina mais
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Se decidem participar neste tipo de actividade arriscam a vida, e fazem-no sobretudo com consciência dos riscos objectivos e subjectivos envolvidos.
Em suma, sabem que podem morrer por via das suas próprias decisões e actos. Cada alpinista é um ente autónomo, que faz parte de uma equipa, é certo, mas que tem iniciativa e vontade próprios.
Como em qualquer actividade onde se quebram barreiras e se ultrapassam as marcas estabelecidas, nos Himalaias não há regras definidas e cada qual conhecendo os seus limites (ou julgando conhecê-los) procura exceder-se através do esforço e da inovação.
É muito difícil contestar à priori a iniciativa de um alpinista. Há feitos excepcionais que resultaram de ideias aparentemente “loucas” e que a maioria à priori condenou.
A única coisa que o João Garcia poderia ter feito junto do Bruno Carvalho no Shishapangma quando se cruzaram perto do cume, num episódio idêntico ao que exponho acima e ocorrido há um ano, seria aconselhá-lo a ter cuidado e a perder o menos tempo possível.
O atraso do Bruno nada de errado poderia denunciar.
E se algo de errado se passava com ele, teria de ser o próprio a saber decidir renunciar.
Se ele atentava um 8000m tinha de estar à altura das exigências da tarefa, em todos os seus aspectos mais críticos.
A e
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Já me atrasei em diversas situações, como para tentar recuperar a circulação num polegar ou estar 30 minutos a tentar abrir uma abertura de velcro na traseira das calças para poder obrar a 8400m!
O Bruno tinha de ter a capacidade de decidir se estava capaz de prosseguir, e até onde.
Decidiu prosseguir, e provavelmente decidiu bem, por que se sentiria em boas condições.
Errou na descida do cume e infelizmente pagou com a vida.
Ninguém o poderia ter evitado, só ele.
Gonçalo Velez
PS: Dias depois de escrever o texto acima, encontrei-me com o João que acrescentou dois dados:
a) Acordou com o Bruno, quando se separaram, que este teria como limite de horário as 14h para dar meia volta e descer;
b) Entregou-lhe o telefone de satélite para ele poder comunicar com o acampamento base, e daqui poderiam comunicar por rádio para o João no C3, caso o Bruno precisasse de ajuda.
Nota: É inacreditável existir gente que opina sobre assuntos delicados e sérios, sem nada conhecer do assunto, tanto da matéria, como do contexto em que a acção ocorreu. Revelam ignorância e má fé!
O editorial do último panfleto da Federação de Campismo de Portugal (nº 15, Jul-Ago-Set 2007) é disso um exemplo flagrante e de muita gravidade.
Demonstra uma grande irresponsabilidade no que pretende questionar, não apresentando quaisquer fundamentos objectivos para tal.
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