De madrugada, acordamos às 3.30 para um bom pequeno-almoço (nesta data, 23 de Agosto, eu já ando a comer mal, em altitude, vai quase para um mês). Que saudades da comida da minha mãe… A saída faz-se pelas 4.30, a par do início da alvorada, ainda de frontal aceso. Primeira nota desagradável, o facto de todos os ocupantes dos 2 refúgios saírem a esta hora, que garante a melhor relação poupança de tempo/ luz disponível. Dezenas e dezenas de alpinistas, a maioria enquadrados pelos “simpáticos” guias de Zermatt, cuja “afabilidade” é mundialmente conhecida.
Somos das poucas cordadas sem guia, e ainda por cima forasteiros. O Paulo Alves, mais experiente e sabido, já de véspera tinha definido a constituição das cordadas, que me deixou algo preocupado. Apesar de eu fazer cordada quase sempre com o Pedro Cid, ele escolheu-o para si e encomendou-me o Jorge Matos, na altura o participante com menos experiência deste grupo de 4. Preocupei-me, mas assumi que era para subir, e em segurança. Claro que este aspecto de garantir a segurança era muito relativo, uma vez que a corda ia esticada a uma boa dezena de metros, mas praticamente não se colocava qualquer tipo de material. Procedíamos a uma subida em simultâneo dos dois membros da cordada, passando apenas a corda por alguns bicos de rocha (que esperávamos detivessem alguma queda) e colocando muito de vez em quando algum anel de fita, quando a rocha passava do generalizado III para algum pontual IV grau.
É ainda no período de adaptação à rocha e à forma de evolução da cordada em movimento, que vejo um guia suíço agarrar-se e subir descarregando peso na corda do Jorge, que nesse troço subia em primeiro. Desato aos gritos para este verdadeiro assassino, que podia ter feito o homem despenhar-se por ali abaixo. Mais acima, nuns passos mais ou menos evidentes, com uma boa continuação, vejo os guias darem-nos passagem, com um internacional “avanti, avanti”. Começo a pensar que eles afinal nem são assim tão antipáticos e já nos estão a aceitar como parte do jogo. Depois de subirmos um comprimento de corda (curta), vejo que os “animais” estão a seguir pela via horizontal, e não em frente, por onde nos cederam passagem, só para nos lixarem descaradamente. Um escândalo que nunca tinha visto em profissionais da montanha, nem voltei a ver até hoje. Outro aspecto que me impressionou bastante, logo de início, foi o contacto visual, quase físico, corpo a corpo, com os alpinistas que tinham ficado de noite pela parede acima. Estavam verdadeiramente encastrados nas fendas, por onde tínhamos de nos agarrar e subir, com ar lastimável e com um olhar dramático, que transmitia um subliminar apelo de “não subam, não se metam nisso”. Alguns estavam muito mal vestidos, com uns blusões ligeiros, outros nem isso. Dezenas deles. Pensávamos para nós que não queríamos estar naquele filme na noite seguinte, acelerávamos o passo, e olhávamos para o distante bivaque de madeira “Solvay”, que constituía uma tábua de salvação para impedir um bivaque na descida, com os seus quase exactos 4.000 metros de altitude e um wc aéreo, despenhando sobre a face norte. Refugio Solvay, retirado daqui
A aresta pareceu-nos longa, muito longa. Nunca parámos, mantivemos sempre bom ritmo e íamos assistindo a vários clientes assediados pelo ritmo alucinante dos guias que iam desistindo e voltavam para trás. Cada guia impunha um ritmo superior ao do seu cliente, rebentava com este, e voltava para baixo, com o dia ganho e pago à partida, e ainda ia almoçar a casa. Belo emprego! Eram mais as cordadas guiadas que voltavam para trás, do que as que atingiam cume. As horas iam-se sucedendo e os choques iniciais de tudo isto iam-se esbatendo. Habituamo-nos a tudo. O ritmo continuava alucinante. A cordada do Paulo Alves mostrava o caminho e a minha mantinha o ritmo, com dificuldade. Apesar de muito bem aclimatado, sem qualquer sinal de problemas com a altitude, o cansaço de 3 semanas de montanha começava a acumular e já só pensava em sair dali, ir para uma praia grega e comer uns bons bifes e umas “mogatchas” de queijo. Finalmente, atingimos o pequeno refúgio Solvay, com uma rápida paragem, uma olhada pelas duas tarimbas acanhadas e pelo wc, com alguma vertigem. Só aqui nos apercebemos, em toda a sua dimensão, o que deve ser a face norte do Cervino. O tempo corre e não permite grandes paragens. Além do tempo, também o oxigénio escasseia. Cada passo, cada puxada de braços, parece ser mais cansativa que no início. Observamos que a parte “fácil” das cordas fixas se aproxima, sentimos algum alento e incentivo. Com as cordas, o cume está no papo... Ilusão. As cordas fixas antigas, com diâmetro “naval”, enchem uma mão inteira e dão a sensação, ao fim de meia centena de metros, de que os antebraços vão claudicar. Parece que vamos abrir as mãos a qualquer momento e despenhar naquele mundo de total verticalidade, que aqui impõe as cordas fixas. Muitas vezes os pés estão assentes em nada, tal a verticalidade da parede.. Começamos a procurar sempre a próxima vira de pedra que nos permita um curto descanso e alívio dos braços. Também a neve fresca dos últimos dias, que até aqui não tem causado muitos problemas, começa a acumular-se em plataformas e presas. Levamos agora crampons calçados, o que torna tudo um pouco mais difícil, mas dá uma segurança acrescida na troca entre cordas fixas e nas escassas plataformas. No meio da luta contra o ácido láctico acumulado, vejo uma cordada de dois japoneses a descer do cume (já muito próximo), em que o guia despenha a rapariga pela zona vertical, literalmente, e lhe dá depois corda com um nó dinâmico. Leram bem: atira a cliente de 40 kg para o vazio, e depois vai frenando a queda! Em relação ao marido, um pouco maior que a pequena japonesa, tem mais pudor e dá-lhe uma espécie de segurança rápida ao longo das cordas fixas. Continuo chocado e escandalizado com estes guias antipáticos e rudes. Mas já nada me surpreende nem provoca muita emoção, e continuo decidido a subir e a atingir o cume, custe o que custar, mesmo que isso signifique um regresso depois da hora limite. Já na zona cimeira, surge um heli da Air Glaciers, a rondar o cume e a zona vertical das cordas fixas, que me causa transtorno e preocupação: neve pelo ar, cordas pelo ar, fitas de mochila furiosas a bater na cara, sei lá, um desassossego. Conforme chegaram, também assim partiram, depois de duas ou 3 voltas pelo cone somital. Mais uns comprimentos e eis que o cume falso surge na nossa frente, agora apenas com uma pequena aresta até ao cume real, com a sua cruz, que nos transmite uma forte sensação mística. São 13.30 do dia 23 de Agosto, e demorámos 9 horas de luta constante desde o refúgio até este cume, tirado a ferros. Fotos da praxe, algo de comida, e meia volta, que os relógios não param. A descida parecia interminável. Agora já não temos ilusões, e sabemos qual a extensão real desta aresta e das últimas 9 horas. Para além das cordas fixas, fazemos tudo destrepando, excepto dois rapeis na zona mais vertical, intermédia, por sinal equipados com duas argolas de aço, que constituíam o pouco equipamento que encontrámos pelo caminho. A minha corda de 40 metros, com 8,5 mm de diâmetro, finíssima para a época, acabada de comprar em Chamonix e estreada aqui, fornece um rapel de 20 metros suficiente. Levou um tratamento tal na subida, que agora parece muito usada, com apenas um dia intenso. No segundo rapel, uns alemães acima de nós largam pedras e uma delas atinge o meu antebraço em cheio. Parti o braço, penso. Os 5 minutos seguintes só vêm confirmar esta suspeita, uma vez que incha para o dobro. Engulo em seco, e sigo descendo. Apesar de não ter feito qualquer radiografia, a mobilização que consigo nos dias seguintes, e o desaparecimento do inchaço e dor, muito mais tarde, parecem afastar as suspeitas de fractura. Mas naquele dia esse era um cenário real para mim (e para os companheiros de cordada). Chamámos uns nomes aos alemães, em várias línguas, fizemos uns gestos internacionais, algo agressivos, mas tivemos de continuar, sem paragens. A luz ia ficando ténue, o refúgio longe. Os frontais estavam a postos, mas fomos acelerando o destrepe. Com o lusco-fusco atingimos o refúgio. Olhamos para trás com uma sensação mista, de conquista e de alívio. Demorámos 9 horas e meia a descer, mais 30 minutos que na subida. Os frontais começam a acender-se pela parede acima, e daí a pouco veremos alguns a apagarem-se. Contamos 10, 20, 30 frontais. Quantos dramas se passarão esta noite na aresta de Hornli.
Mas a jornada não acabou para nós. O refúgio, pago a peso de ouro em francos suíços, não é para nós esta noite, e continuamos caminho abaixo, agora já em ténis e com os frontais a fraquejarem, até as baterias de 4,5 volts se exaurirem por completo. Em Staffel, finalmente, paramos. Procuramos uma cabana de lenha ou de gado para passar a noite. Apesar da baixa altitude e de termos encontrado uma parte de baixo de chalé com madeiras e até mesas, rapamos um frio desmedido. Pensamos nos companheiros de escalada que estão acima de 3.000, ao longo da aresta. No dia seguinte voltamos à civilização, eu com especial vontade de praia. Depois de várias noites do comboio, dia 30 de Agosto estou em Istambul com o Jorge Matos, em plena ocupação militar das ruas, e dia 3 de Setembro estamos no cume do Monte Olimpus, na Grécia, nos 2.917 metros do pico Mitikas.Monte Olympus,Grécia, imagem retirada daqui
A overdose de montanha passou depressa!
Texto e imagens de Rogério Morais
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2 comentários:
O actual refúgio de parede Solvay pouco tem a ver com a antiga cabana, minimalista e com a célebre casa de banho sobre a face norte, um cubículo de madeira com um buraco sobre o vazio. Um abraço. RM
Olá Rogério,
Estive agora a ler a tua história do Cervino, que é engraçada mas tem um travo de presunção que poderias evitar. E como me chamas para a tua auto-promoção, ganhas direito a comentário, composto por uma graça ao teu estilo, duas reflexões, um esclarecimento e uma oferta:
(Graça ao teu estilo) Mesmo tu, que eras distraído e levavas coisas do mostruário das lojas (sem as respectivas caixas, portanto), deves recordar-te que a regra para o que se comprava em Andorra era eliminar caixas, etiquetas e tudo o que pudesse causar problemas na alfândega, certo? Já agora, podias até dito que quem me roubou os crampons anteriores o tinha feito para evitar que eu me metesse em trabalhos (eu sei que não foste tu).
(Reflexão 1) Para um alpinista da tua categoria e experiência, perder-se no caminho para o refúgio exactamente no mesmo sítio e à mesma hora que um inexperiente como eu, não abonava muito a favor da tua reputação pois não?
(Reflexão 2) A tua preocupação em fazer cordada com o Paulo ou, pelo menos, veres-te livre de mim, que conhecias mal e ainda menos como escalador, também revela sobre a competência e a auto-confiança de cada um face à escalada em questão, não é?
(Esclarecimento) Na realidade, estavas bastante inquieto; Inquietação e nervosismo que tiveram alguma responsabilidade no incidente com o guia que, curiosamente, ainda hoje descreves de forma tão inflamada. Só acalmaste quando percebeste que, em condições normais, os teus dotes de escalador não me faziam falta. A partir daí, foi esperar que tudo corresse bem, como felizmente aconteceu.
(Oferta) Se quiseres fazer mais artigos sobre o Cervino, posso emprestar-te as fotografias originais; Embora no conjunto não sejam grande coisa, sempre há algumas mais interessantes e não precisas usar cópias de má qualidade.
Um abraço,
Jorge
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