segunda-feira, 23 de junho de 2014

Dois portugueses mortos no Toubkal: o voo de Faro do Lockeed L 749 A Constellation

Dois portugueses mortos em Marrocos não é um facto especialmente relevante. Sobretudo se pensarmos que num único dia de agosto de 1578, terão ali morrido cerca de 9.000 portugueses, durante a batalha da Alcácer Quibir. Como tal, a morte de dois portugueses neste reino alauita, nem sequer seria notável, não fosse ter ocorrido muito perto do topo do Jbel Toubkal, o cume de 4.167 metros tantas vezes alcançado por montanheiros portugueses nos últimos 30 anos. Para melhor enquadrar este acidente aéreo, temos de relembrar aquela que ficou conhecida como a guerra do Biafra, entre 1967 e 1970. Este país efémero (durou pouco mais de 3 anos) correspondeu a uma tentativa de independência de uma parte da Nigéria (todo o Sudeste) país que, como sabemos, continua a sofrer convulsões e tentativas de “libertação” de partes do território, nomeadamente na atualidade através do grupo islamita Boko Haram, que controla uma boa parte do Norte. Os que já ultrapassaram os 50 anos de idade, lembram-se das primeiras imagens mundialmente difundidas da fome no Biafra, com crianças de ventre dilatado, mulheres em pele e osso a tentarem amamenta-las, fome generalizada, etc. Estas imagens, tristemente célebres, levaram a uma mobilização humanitária mundial, no sentido de ultrapassar o bloqueio imposto pelas autoridades nigerianas. No entanto, a ponte aérea criada pela Cruz Vermelha, em parte suportada por pilotos israelitas voluntários, escondia também abastecimentos de armas e respetivas munições, a par da necessária e imprescindível ajuda internacional. No dia 28 de novembro de 1969, um avião Lockeed quadrimotor partiu do aeroporto de Faro com destino a São Tomé, colónia portuguesa ainda por mais meia dúzia de anos. Registado como pertencendo ao “Governo do Biafra”, transportava munições destinadas a este conflito (não está provado que seguissem também armas a bordo) provavelmente oriundas da fábrica de Braço de Prata, que detinha o monopólio nacional da sua produção. São Tomé era um destino intermédio, onde a carga seria transbordada para um dos 5 potentes aviões Boeing C 97 Stratofreighter, envolvidos diretamente na guerra do Biafra. São Tomé era aliás não só a base da ponte aérea humanitária, mas também a base de todas as operações militares aéreas, ligando os enormes C 97 quase todas as noites São Tomé com a pista improvisada de Uli, dentro do território libertado do Biafra. Todas as operações decorriam de noite, uma vez que a Nigéria tinha menos capacidade de abate de aviões neste período. O Lockeed L-749 A Constellation saído de Faro era um polivalente avião com 4 motores Wright, de 18 cilindros cada, geralmente utilizado em layout de transporte de passageiros, mas neste caso uma versão militar de carga, matriculado 5N-85H e que fez o seu primeiro voo em 1951. A versão que se seguiu seria o Super Constellation, bem conhecido da TAP e dos aeroportos portugueses. A bordo do Lockeed, além da “preciosa” carga, seguiam 8 homens, dos quais 4 eram a tripulação necessária, estando ainda dois portugueses entre os restantes ocupantes. A sua identidade é desconhecida, mas será alvo de investigação posterior. Após uma travessia Faro – Marrocos sem sobressaltos relevantes, já com largas milhas percorridas dentro de território marroquino, o piloto reportou falha em 3 dos seus 4 motores. A noite de novembro presume-se tempestuosa e plena de negritude, mas isto são meras suposições. O que é facto é que o avião desapareceu sem voltar a contactar a torre de controlo e sem atingir o destino final, em São Tomé. Dado o alerta, as operações de busca e salvamento iniciaram-se no dia seguinte, tendo sido abandonadas ao fim de alguns dias sem encontrar vestígios deste aparelho, que se presumia mais a Oeste. Apenas em julho do ano seguinte, já em pleno verão no Alto Atlas, alguns montanheiros encontraram destroços do avião, tendo sido estes restos ligados ao sucedido 8 meses antes. Provavelmente, já antes da identificação de julho, alguns habitantes berberes teriam recolhido e aproveitado as melhores chapas de alumínio para as suas construções paupérrimas, completamente isolados em termos de comunicações e informação, distanciados de facto do poder político árabe dominante. Relevante também é o facto de, pouco mais de um mês depois do avião se despenhar, a guerra do Biafra ter terminado, a par do desaparecimento do próprio país, em janeiro de 1970. Pela leitura que hoje é possível fazer-se no terreno, o impacto fatal ocorreu exatamente no cume do monte Thibeirine, de 3.900 metros, tendo um dos motores “completo” ficado praticamente encastrado no referido conjunto rochoso. Uma parte relevante do restante material ficou espalhado pela vertente que desce e conduz em direção ao vale do refúgio Neltner (vertente Oeste do Thibeirine), não tendo sido possível verificar se a vertente Leste possui ou não parte significativa de destroços, dada a verticalidade e inacessibilidade desta vertente. A maioria dos destroços é acessível através da descida da vertente Norte do Djbel Toubkal (4.167 metros), com inclinação acentuada, mas com trilho na maioria da sua extensão. Os destroços ainda visíveis incluem um segundo motor, pistons isolados, deste ou de outros motores (cada motor tem 18 pistons), caixas de rádio, bases de manómetros, cercaduras de janelas do cockpit e partes da fuselagem, ainda com pintura original branca e vermelha. Uma hélice completa jaz pelo terreno. Logo abaixo de todo este conjunto de destroços, algumas pedras mal alinhadas constituem a sepultura de partes dos 8 corpos, entre os quais os dois portugueses acidentados. Relembremo-nos que estávamos em 1970, numa zona de acesso muito remoto, em que a recuperação de cadáveres não assumia a importância psicológica que tem hoje em dia para famílias e governos. Quem seriam os portugueses envolvidos? Ligados ao comércio de armas e munições? Ultramarinos de São Tomé? Administrativos do Estado? Mercenários? Dúvidas que merecem uma segunda investigação. Quem possuam contactos no INAC, ANA ou mesmo NAV, ajudem na recolha de dados, por favor, nomeadamente na recolha da lista de ocupantes. Voltaremos…